PROJETO CONTA QUE EU CONTO

O projeto “Conta que eu conto” busca aproximar os estudantes do texto literário, em especial memórias literárias, a fim de explorar, além das características do gênero, outras possibilidades tais como a emoção, a criatividade, a intuição, as sensações, o aspecto lúdico e interativo. Além disso, propõe o encontro entre os jovens e destes com outras gerações para ouvir dos mais velhos histórias de vida, culturais ou sociais. Estas podem constituir um importante acervo de memórias e proporcionar aos jovens o resgate de sua identidade cultural bem como a percepção de que o tempo presente, momento sócio-histórico no qual nos situamos, é fruto dos caminhos e percalços do passado. Em outras palavras, conhecer “nossas” histórias significa conhecer a nós mesmos.

Uma outra possibilidade surge neste ponto: a percepção do valor do idoso em nossa sociedade. Uma sociedade que oprime a velhice de múltiplas formas e se apega exageradamente ao moderno e ao que é de consumo. Sufoca as lembranças e desmerece a função social do idoso, fonte de onde jorra a essência da cultura. (CHAUÍ in BOSI: 1994, p. 18)

Perceber jovens tocados ou seduzidos pelas narrativas e personagens das histórias significará uma importante conquista do Colégio Estadual Governador Flávio Marcílio na formação de leitores e de sujeitos mais sensíveis e portadores de múltiplas referências culturais e afetivas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE RAIMUNDA ENEDINA

DA LAGOA DE NOSSA SENHORA

À COMUNIDADE DE CABELO DE NEGO


Tive uma infância muito sofrida, mas eu era muito feliz na Lagoa de Nossa Senhora. Lembro das festas de igreja que ia com minha mãe. Ela colocava barraca para vender caldo e café. O dinheiro que ganhava era para o sustento dos filhos.

Um acontecimento que marcou esse período foi a chegada de uns peregrinos a nossa cidade. Eu tinha uns sete anos. Entre eles havia, ciganos, índios e vaqueiros que iam abrir a mata. Minha mãe aceitou o trabalho que eles propuseram: cozinhar para aquele grupo de homens. Minhas irmãs e eu, ainda pequenas, ficamos sob os cuidados de Aninha Papacunha – a senhora era assim conhecida porque colhia ipecaconha no meio do mato.

Com a volta de minha mãe de seu trabalho de cozinheira, fomos morar no beco do João Damião, atual beco do Leleo. Lembro bem que ali moravam umas famílias abastadas e eu perguntava à mamãe por que aquelas pessoas eram ricas. Ela, com seu jeito simples, dizia: “É porque eles tem cinquenta mil contos de réis no bolso.” Conformava-me com aquela resposta e ficava admirando seus belos cavalos de pelo reluzente exibindo uma corona, um acessório colocado nas costas do cavalo que tinha muitos bolsos. Acreditava que dentro daqueles bolsos havia muitas moedas valiosas.

Vivíamos da agricultura. Quando não tínhamos o que comer, os mais ricos que ali moravam não se recusavam a nos ajudar. Não era com coisa pouca. Eles enchiam cuias de alimento que matava a nossa fome.

O tempo passou e me tornei uma mulher. Casei a primeira vez com um bom homem chamado Gerardo e fomos morar no tabuleiro do Alto São João. Lá tive cinco filhos dele e juntos trabalhamos muito na agricultura. Eu era muito feliz; a comida era farta. Mas o destino me aprontou uma surpresa: meu marido faleceu. Fiquei criando meus quatro filhos sozinha até que decidi casar-me novamente e dividir meus problemas com mais alguém. No entanto, as coisas não aconteceram como eu esperava. Foram dez anos de sofrimento durante os quais tive mais quatro filhos. Até que certo dia ele me abandonou e então minha vida tomou outro rumo.

A partir de então meus filhos e eu trabalhamos muito. Eu cortava olho de carnaúba de cinco e meia da manhã às seis da noite. Chegava muito cansada, mas estava em paz. Também nesse período, meu filho mais velho aprendeu a fazer a massa para construção e o segundo passou a trabalhar no matadouro segurando a mão do boi em troca de alimento. Com isso, estava garantida a comida de todos.

Além de todo esse trabalho, ainda encontrávamos tempo para fazer tranças. Apurávamos um bom dinheiro no centro da cidade com a venda do nosso artesanato no armazém de Senhor Alexandre. Foi através desse senhor que consegui comprar um terreno de bom tamanho no lugar que hoje é conhecido como Cabelo de Nego.

Fui a primeira moradora da rua hoje conhecida como Travessa Antônio Gonçalves Ferreira. Quando cheguei nesse pedaço de terra, desmatei-o com a ajuda de meus filhos e construímos nossa casa. Em seguida, cultivamos milho e colhemos muita coisa boa. A terra era virgem e por isso lá brotou um maravilhoso milharal.

No início da rua havia uma árvore frondosa sobre a qual os mais antigos diziam que era do primeiro século. Nela amarravam reses para o corte e era conhecida como cabelo de nego. Em nossa cidade só havia três cabelos de nego como aquele: um na minha rua, outro em Lagoa das Bestas e o terceiro em Arroz, uma pequena comunidade no meio do mato.

Infelizmente, alguns anos atrás, a árvore tão bonita que deu origem ao nome da nossa comunidade foi arrancada para a construção de uma casa. Tentei impedir que aquilo acontecesse, mas não consegui.

Atualmente todos os meus filhos moram com suas famílias ao meu lado no pedaço de terra que comprei com tanto esforço e que com muito gosto dividi entre todos.

Josiane de Sousa Silva, 2º A

Texto baseado na entrevista com Raimunda Enedina da Silva,

moradora da comunidade de Cabelo de Nego.

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