PROJETO CONTA QUE EU CONTO

O projeto “Conta que eu conto” busca aproximar os estudantes do texto literário, em especial memórias literárias, a fim de explorar, além das características do gênero, outras possibilidades tais como a emoção, a criatividade, a intuição, as sensações, o aspecto lúdico e interativo. Além disso, propõe o encontro entre os jovens e destes com outras gerações para ouvir dos mais velhos histórias de vida, culturais ou sociais. Estas podem constituir um importante acervo de memórias e proporcionar aos jovens o resgate de sua identidade cultural bem como a percepção de que o tempo presente, momento sócio-histórico no qual nos situamos, é fruto dos caminhos e percalços do passado. Em outras palavras, conhecer “nossas” histórias significa conhecer a nós mesmos.

Uma outra possibilidade surge neste ponto: a percepção do valor do idoso em nossa sociedade. Uma sociedade que oprime a velhice de múltiplas formas e se apega exageradamente ao moderno e ao que é de consumo. Sufoca as lembranças e desmerece a função social do idoso, fonte de onde jorra a essência da cultura. (CHAUÍ in BOSI: 1994, p. 18)

Perceber jovens tocados ou seduzidos pelas narrativas e personagens das histórias significará uma importante conquista do Colégio Estadual Governador Flávio Marcílio na formação de leitores e de sujeitos mais sensíveis e portadores de múltiplas referências culturais e afetivas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE ANTONIO RODRIGUES FILHO



RUSSAS PERDEU, MAS NÃO DEU BRECHA


Desde a minha infância a minha grande paixão foi o esporte. Quando criança já trabalhava, mas sempre arranjava espaço para o futebol que me enchia de satisfação. Lembro-me bem que aos domingos meus pais só me deixavam jogar bola depois de ter ido à missa às 4h da manhã, na igreja matriz. Minha família era cumpridora das doutrinas da igreja e, por isso, a missa do domingo era sagrada.

Na adolescência, passei a estudar no Ginásio Jaguaribano, atual Colégio Estadual Governador Flávio Marcílio, uma das escolas mais antigas da cidade de Russas. Nessa escola, além de me entregar de vez aos treinos para ganhar as competições, que antigamente eram muito mais acirradas, descobri uma segunda paixão. Comecei a ajudar a minha querida professora Dona Naninha que lecionava francês e matemática e graças à oportunidade que ela me deu de ajudá-la nas correções e em outros trabalhos seus, e também por me incentivar a dar aulas no futuro, fez despertar em mim o gosto por lecionar. Naquele tempo, podia sentir a sede de conhecimento que os alunos tinham e por isso decidi que um dia iria ensinar profissionalmente.

Vivi vários episódios engraçados durante a minha trajetória de aluno esportista. Um dos que mais me marcaram aconteceu num campeonato que disputamos em Fortaleza no qual os alunos do Ginásio Jaguaribano e mais algumas alunas do colégio Patronato, atual UNECIM, representaram nossa querida cidade de Russas. As irmãs cordimarianas, que dirigiam o colégio Patronato, só liberaram as meninas para jogar com uma condição: os shorts teriam que ser abaixo do joelho.

Durante o deslocamento para o local onde seria realizado o campeonato, permanecemos ansiosos para entrarmos em campo. No evento, fizemos o melhor que podíamos. Algumas equipes ganharam, outras perderam. Não lembro bem dos detalhes, mas uma coisa não esquecerei. Embora as meninas do Patronato não tenham tido um bom resultado no jogo, fizeram tanto sucesso que foram manchete no jornal de Fortaleza. A Tribuna do Ceará publicou o seguinte: “Russas perdeu, mas não deu brecha”. Foi muito engraçado!!

Muitos campeonatos aconteceram depois desse e participei de todos os que pude. Até terminar o curso que hoje equivaleria ao ensino médio, joguei muito e estudei muito mais. Devido ao meu esforço fui aprovado no concurso do Banco Brasil. Lá trabalhei por muitos anos e adquiri muita experiência, no entanto não me sentia realizado. Nesse período, dava umas aulas no período da noite, mas aquilo não era suficiente para mim. Certo dia, abri mão do emprego de bancário para dedicar-me ao que realmente me fazia feliz: o esporte e a sala de aula.

A partir de então, tudo ganhou cores novas em minha vida. Tive o privilégio de ser nomeado o Primeiro Diretor de Esporte do município e por isso dediquei-me de corpo e alma àquela função. Nesse período, passei a ensinar como professor de educação física e então pude motivar muitos jovens a praticar esporte, desenvolver seus talentos e fazê-los campeões.

Atualmente não leciono mais nessa área. Passei agora a ensinar matemática, matéria que ensinei na adolescência. Sinto saudade dos tempos bons que vivi, mas me sinto feliz e realizado pelas vitórias que obtive em minha vida.


Suelly Cristina da Silva Lima, 3º H.

Texto baseado na entrevista com Antônio Rodrigues Filho, 65 anos,

professor do Colégio Estadual.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE DONA OGARITA



AMOR PERFEITO

VITÓRIA RÉGIA

O que mais gosto de recordar daquele tempo são minhas festas de juventude, principalmente as de igreja. Ah! Estas não poderia jamais esquecer. Dividíamo-nos em dois grupos para fazer a festa após a missa. Lembro como se fosse hoje todo o meu grupo correndo ao redor da coluna da hora e chamando a atenção de todos que ali paravam e se sentiam convidados a cantar conosco:

"É,É,É,É
AMOR PERFEITO....

E SE NÃO FOR PODE VIRAR QUE DÁ PRA SER,
O NOSSO BLOCO ABAFA MESMO QUALQUER OUTRO,
E ESTAMOS LOUCOS PRA VENCER
X

O AMOR PERFEITO É UM BLOCO FORTE
SEMPRE HÁ DE SER

É,É,É,É,........"



O outro partido de nome Vitória Régia não emocionava tanto, eles pareciam reis e rainhas, só podia chegar perto deles quem tinha permissão. Já o amor perfeito não, nós éramos do povo e sempre nos divertíamos correndo na direção dos caminhoneiros que paravam à procura de algo. Naquela época, a avenida principal de nossa cidade, a Dom Lino, era também BR 116 e portanto caminhoneiros de vários lugares do país passavam por dentro do município.

Certo dia, um caminhoneiro se decepcionou com a recepção na barraca do grupo Vitória Régia, pois um de seus integrantes falou baixinho algo parecido com..."lá vem esse povo baixo andando entre a gente". E isso foi o bastante para que nosso novo colega se juntasse a nós.
Depois desse episódio todo caminhoneiro que passava pela cidade revelava uma espécie de código que somente nós sabíamos:"VOCÊS SÃO DA TURMA DO ÓLEO?". Se respondêssemos que sim, isso significava que a nossa turma era justamente a do povo. O caminhoneiro que havia sido destratado na barraca do grupo adversário sempre aconselhava a quem passasse por nossa cidade a visitar a barraca do amor perfeito. Aquela era uma parada obrigatória.
Alguns dias depois veio um grupo de maçons para uma inauguração. Quando soubemos de sua chegada na cidade, preparamos nossa equipe para recebê-los, só que de uma foma especial para que gostassem e voltassem sempre que pudessem. Nossa equipe se vestiu de duas cores: PRETO e BRANCO. Adequamos nossas roupas às roupas dos maçons, só que sem ninguém desconfiar do nosso intuito. Chegada a noite lá vinham eles todos juntos, era uma equipe grande e, como sempre fazíamos com os visitantes, corremos para recebê-los. Era um grupo simpático e logo nos enturmamos. Após algumas horas de conversa e muitos risos, um da turma dos visitantes percebeu uma “mera coincidência”: nossas roupas estavam iguais as deles, da mesma cor, e isso lhes fez gostar ainda mais de nossa equipe.

No encerramento da festa, e após o cálculo do apurado, soubemos que nossa equipe se revelara com uma quantia bem satisfatória. A vitória era nossa, e como premio tivemos um baile dançante. Ah, que baile.... Ao som da banda “pau e corda” a galera se divertia cantando, dançando, conversando e até saboreando aloá, a bebida favorita da época, que era feita de milho e armazenada em potes. Sarrabuivámos bastante, ou seja, brincávamos muito e as paqueras aconteciam.

Meu primeiro namoro foi aos 18 anos. Ele se chamava Anesion e sempre que podia vinha até minha casa. Era engraçado, minha mãe sempre estava por perto, na verdade bem perto. Ela colocava sua cadeira entre a minha e a dele e assim ficávamos até da hora dele ir embora.

Certa vez fui convidada a ir ao sereno de um baile, isto é, observar um pouco as pessoas que se encontravam do lado de fora da festa a qual normalmente acontecia em casa de família. Estava eu então na janela da casa a observar as pessoas que por ali se encontravam quando o Capitão Assis que por mim tinha carinho – ele era meu conhecido de muito tempo – mandou me chamar para que dançássemos um chote. Ele sabia que eu adorava dançar chote. Relutei de inicio dizendo-lhe que meu namorado, que ali não se encontrava, poderia não gostar. Nada o deteve. Lembro como se fosse hoje o que ele me disse: “- qual o problema? Quero dançar com você e não com ele". Aí não teve jeito... O chote embalava todo o salão:

"LÁ NO MEU PÉ DE SERRA …

DEIXEI FICAR MEU CORAÇÃO,

AI QUE SAUDADE EU TENHO,

EU VOU VOLTAR PRO MEU SERTÃO..."


Dancei como nunca, ele era um ótimo par. Todos ali presentes pararam para nos prestigiar. Entreguei-me à dança e ao chote que seguiam. É uma pena que alegria sempre dura pouco, pois no outro dia, como de costume andando pela praça, veio ao meu encontro uma amiga que me disse ter visto Anesion com uma cara muito brava, provavelmente com raiva de algo. Imediatamente me veio a lembrança da noite anterior. Pedi-lhe que por favor fosse até ele e lhe dissesse que eu queria vê-lo urgentemente.

Quando ele chegou até mim, contou-me o que já esperava. Ele não entendeu ser só uma dança, desconfiou, teve ciúmes e daí tomei uma grande decisão e lhe disse:

- Olhe, se você com toda esta história quer me arranjar pretexto para terminar, é melhor que acabemos por aqui, não gosto dessas coisas de desconfiança.

O coitado ficou pasmo, branco, mas o deixei na mesma hora. Daí em diante, apenas amizade entre nós dois. É engraçado que essa amizade se perpetua até hoje. Sempre que podia ele me mandava lembranças de onde estivesse. Certa vez, por engano, ele me ligou mas não sei como sua ligação acabou caindo em outra casa. Por sorte tratava-se de uma conhecida minha e, ao me ver passar pela rua, ela avisou-me de sua ligação. No mesmo instante eu corri e retornei. O danado estava no Rio de Janeiro e me ligava para me contar que estava sendo avô.... ri muito e colocamos os papos em dia.

Hoje, quando alguém me pergunta com quem moro, se sou casada... eu sempre respondo: casada não, mas moro com companhias insubstituíveis, melhores impossível. E querem saber quem são? Pois são apenas três: A MARIA, O MENINO E O FRANCISCO.... Maria é a Nossa Senhora lá do céu, o menino é o Jesus de Praga e o Francisco é o de Assis, que sempre protegem minha casa e com eles sou muito, mas muito feliz.


Rosinete da Silva Oliveira, 3º D.

Texto baseado na entrevista com Maria Ogarita de Sousa,83 anos ,

professora aposentada, moradora do município de Russas.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE ALFREDO NETO


A TERRA QUE SONHEI


Casei em outubro de 1956 com uma linda jovem e com ela vim conhecer Russas, cidade que considerava uma boa opção para morar. Então, cinco anos depois, minha esposa e eu decidimos nos mudar para essa cidade. Aqui construí minha família composta por seis filhos dos quais me orgulho e por quem tudo faço para vê-los feliz.

Ao chegar na cidade, comprei um prédio antigo que derrubei e reconstruí desde o primeiro tijolo. Nele moramos e tivemos nossos primeiros filhos. Na época, vendia queijo e peixe para sustentar a minha família. As feiras eram muito animadas no mercado velho, mas não me sentia feliz com aquele trabalho. Meu sonho era morar numa fazenda e cultivar a terra.

Finalmente, depois de quatro anos, consegui realizar meu desejo. Comprei um pequeno terreno na comunidade do Peixe. Por volta de 1967, aquela comunidade era apenas uma pequena vila, mas lá eu podia acordar com o som dos pássaros, calçar minhas alpergatas e balançar-me em uma rede. Que bom lembrar!!

Passado algum tempo, consegui comprar mais terras e aumentar minha produção plantando milho, feijão, algodão e mandioca. Tais produtos oferecia às comunidades vizinhas de Lagoa dos Cavalos, Bananeiras e Cipó. Por volta de 1970 comecei a trabalhar com o caju o que rendeu um bom dinheiro.

Lembro-me bem que onde havia apenas terras abandonadas, hoje é todo o meu patrimônio. Aquela terra sempre produziu frutos muito gostosos. A castanha do caju, tão apreciada, era vendida rapidamente.

Hoje, possuo cerca de cento e quarenta hectares de terra produzindo caju e me orgulho do que construí. Por outro lado, sinto-me triste por, mais cedo ou mais tarde, ter que abrir mão de tudo isso que consegui com tanto esforço por causa de um projeto do DNOCS que já se iniciou: a implantação da monocultura nessa região.



Fabrícia Kélvia da Silva Amorim, 1ºA.

Texto baseado na entrevista com Alfredo Neto, 74 anos,

morador da comunidade de Lagoa do Peixe.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE ALDA CORREIA LIMA



DE MENINA HABILIDOSA À MÃE CUIDADOSA


Bons tempos aqueles...!!! O respeito era imprescindível... E as famílias eram muito conservadoras, às vezes até demais. No meu caso, meu pai não me deixava estudar para que eu não me misturasse com os meninos. Porém queria que eu aprendesse, por isso me alfabetizou quando ainda era meninota e me ensinou a ler utilizando artigos de jornais.

Meu pai era um homem muito inteligente, frequentou a escola por somente seis meses, mas o que ele sabia naquela época superava o que muitos alunos de nível superior sabem hoje. Ele adorava ler. Sua imagem com um livro na mão é comum em minhas lembranças. Certa vez, ele advogou em favor de um amigo e ganhou o caso. Naquele tempo, como não havia advogado para esses lados, era comum isso acontecer.

Aos 14 anos aprendi a costurar sozinha e às escondidas, pois meus pais não me deixavam utilizar a máquina de minha mãe achando que eu iria quebrar tudo, afinal de contas uma máquina era uma peça muito valiosa naquela época. Então, quando eles iam dormir, depois do almoço, corria para os cajueiros para desmanchar meus vestidos e remontá-los. Costurava tudo à mão. Quando provei que era boa costureira, consegui comprar uma SINGER fabricada em 1910. Aquilo era uma beleza de máquina.

Em 1941, aos 21 anos, casei com um riograndense e fomos morar em uma casa de taipa de chão batido em Passagem de Russas. Lá tive dezenove filhos por quem fiz o que pude e um pouco mais. A mais velha escolheu nascer em uma data muito especial, no dia da passagem de Nossa Senhora de Fátima por Russas. Foi no dia 27 de novembro de 1953, quando todos foram para a cidade ver a festa. Eu fiquei sozinha em casa e entrei em trabalho de parto, passei seis horas à espera de alguém. Mas tudo deu certo e a criança nasceu com saúde.

Passados alguns anos, com mais filhos, trabalhávamos muito e éramos felizes. Havia fartura em nosso sítio. Plantávamos banana, limão, e muitas outras frutas, principalmente a laranja. Daquele nosso pedaço do paraíso, era comum sair de dois a três caminhões cheios de laranja que era revendida na capital.

Naquela época, ensinava meus filhos e outras crianças da vizinhança, à noite, em minha casa. Nossa sala se transformava numa verdadeira sala de aula. Apesar do meu cansaço, sentia-me feliz por realizar aquela tarefa diária. Sabia que ali estava o segredo para um futuro melhor para aqueles meninos e meninas.

Em tempo de festas de igreja, não havia cansaço que me impedisse de vir a pé de Passagem de Russas para o centro da cidade. Uma coisa que sempre vem a minha mente, quando lembro daquelas longas caminhadas, é a experiência dos mais velhos que diziam que se um cachorro ameaçasse as mulheres, bastava virar a barra do vestido que o cão pararia de latir. Acho que experimentei fazer isso certa vez e deu certo.

Lembro-me de que na época em que meus filhos mais velhos chegaram à idade de estudar, vim morar na cidade com eles, deixando os mais novos com meu amor no sítio. Passava a semana na cidade, mas quando chegava a sexta-feira, aprontava-me para voltar ao sítio para colocar as coisas em ordem e matar minhas saudades. Ah, essas eram muitas!! Respirar o ar daquele lugar e ver nossas plantas arreadas de deliciosos frutos renovava minhas forças para continuar naquela empreitada.

Hoje, sinto saudade daquele tempo tão bom e do meu companheiro que o destino levou. Mas todas as noites ele vem conversar comigo na minha cama e em seguida vai embora porque lá onde ele está é melhor do que aqui. Sou feliz porque meus filhos são bons e tenho o que todas as pessoas querem: uma grande família, uma saúde forte e uma grande história para contar.


Jonathan Martins, 1º D.

Texto baseado na entrevista com Dona Alda Correia Lima, 89 anos,

costureira aposentada, moradora do município de Russas.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE RAIMUNDA ENEDINA

DA LAGOA DE NOSSA SENHORA

À COMUNIDADE DE CABELO DE NEGO


Tive uma infância muito sofrida, mas eu era muito feliz na Lagoa de Nossa Senhora. Lembro das festas de igreja que ia com minha mãe. Ela colocava barraca para vender caldo e café. O dinheiro que ganhava era para o sustento dos filhos.

Um acontecimento que marcou esse período foi a chegada de uns peregrinos a nossa cidade. Eu tinha uns sete anos. Entre eles havia, ciganos, índios e vaqueiros que iam abrir a mata. Minha mãe aceitou o trabalho que eles propuseram: cozinhar para aquele grupo de homens. Minhas irmãs e eu, ainda pequenas, ficamos sob os cuidados de Aninha Papacunha – a senhora era assim conhecida porque colhia ipecaconha no meio do mato.

Com a volta de minha mãe de seu trabalho de cozinheira, fomos morar no beco do João Damião, atual beco do Leleo. Lembro bem que ali moravam umas famílias abastadas e eu perguntava à mamãe por que aquelas pessoas eram ricas. Ela, com seu jeito simples, dizia: “É porque eles tem cinquenta mil contos de réis no bolso.” Conformava-me com aquela resposta e ficava admirando seus belos cavalos de pelo reluzente exibindo uma corona, um acessório colocado nas costas do cavalo que tinha muitos bolsos. Acreditava que dentro daqueles bolsos havia muitas moedas valiosas.

Vivíamos da agricultura. Quando não tínhamos o que comer, os mais ricos que ali moravam não se recusavam a nos ajudar. Não era com coisa pouca. Eles enchiam cuias de alimento que matava a nossa fome.

O tempo passou e me tornei uma mulher. Casei a primeira vez com um bom homem chamado Gerardo e fomos morar no tabuleiro do Alto São João. Lá tive cinco filhos dele e juntos trabalhamos muito na agricultura. Eu era muito feliz; a comida era farta. Mas o destino me aprontou uma surpresa: meu marido faleceu. Fiquei criando meus quatro filhos sozinha até que decidi casar-me novamente e dividir meus problemas com mais alguém. No entanto, as coisas não aconteceram como eu esperava. Foram dez anos de sofrimento durante os quais tive mais quatro filhos. Até que certo dia ele me abandonou e então minha vida tomou outro rumo.

A partir de então meus filhos e eu trabalhamos muito. Eu cortava olho de carnaúba de cinco e meia da manhã às seis da noite. Chegava muito cansada, mas estava em paz. Também nesse período, meu filho mais velho aprendeu a fazer a massa para construção e o segundo passou a trabalhar no matadouro segurando a mão do boi em troca de alimento. Com isso, estava garantida a comida de todos.

Além de todo esse trabalho, ainda encontrávamos tempo para fazer tranças. Apurávamos um bom dinheiro no centro da cidade com a venda do nosso artesanato no armazém de Senhor Alexandre. Foi através desse senhor que consegui comprar um terreno de bom tamanho no lugar que hoje é conhecido como Cabelo de Nego.

Fui a primeira moradora da rua hoje conhecida como Travessa Antônio Gonçalves Ferreira. Quando cheguei nesse pedaço de terra, desmatei-o com a ajuda de meus filhos e construímos nossa casa. Em seguida, cultivamos milho e colhemos muita coisa boa. A terra era virgem e por isso lá brotou um maravilhoso milharal.

No início da rua havia uma árvore frondosa sobre a qual os mais antigos diziam que era do primeiro século. Nela amarravam reses para o corte e era conhecida como cabelo de nego. Em nossa cidade só havia três cabelos de nego como aquele: um na minha rua, outro em Lagoa das Bestas e o terceiro em Arroz, uma pequena comunidade no meio do mato.

Infelizmente, alguns anos atrás, a árvore tão bonita que deu origem ao nome da nossa comunidade foi arrancada para a construção de uma casa. Tentei impedir que aquilo acontecesse, mas não consegui.

Atualmente todos os meus filhos moram com suas famílias ao meu lado no pedaço de terra que comprei com tanto esforço e que com muito gosto dividi entre todos.

Josiane de Sousa Silva, 2º A

Texto baseado na entrevista com Raimunda Enedina da Silva,

moradora da comunidade de Cabelo de Nego.

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE MARIA ZUÍLA

O CHÁ DA CEBOLINHA BRANCA


Desde que me casei aos treze anos fui morar numa casa de taipa na comunidade de Bom Sucesso, em Russas. Só havia a minha casa e uma outra um pouco mais à frente. Ali tudo era mato, mas eu gostava muito porque podia cultivar a terra, criar animais e ainda fazer minhas tranças de palha de carnaúba e minhas louças de barro. Ah, essas últimas me davam um bom lucro. Vendíamos nosso artesanato na feira que era conhecida como “feira das tauba” e também para outras cidades. Com o apurado fui aos poucos comprando pedaços de terra para garantir o futuro dos meus filhos.

Ali também sofri muito. O trabalho era árduo e ainda tinha que cuidar de muitos filhos. Tive vinte, alguns se criaram, outros perdi. Naquela época, tudo era muito simples, tínhamos nossas crianças em casa e as parteiras nos ajudavam como podiam. Tive dois filhos que nasceram “de pé”, mas conseguiram com muito sufoco nascer com vida.

Um episódio daquele tempo me marcou muito. Estava grávida de oito meses e fui procurar meu marido que não era muito bom para mim. No caminho de volta para casa, um cachorro correu atrás de mim e, para me livrar dele, tive que correr me esforçando mais do que podia. O resultado não foi nada bom. A parto foi adiantado e a criança nasceu muito mole e sem chorar. Sem esperança de que ela fosse se criar, saí desesperada para a beira do rio e pedi a Deus que me ajudasse.

Ali, à margem do rio, debaixo do sol quente, senti um toque. Algo me dizia que eu devia fazer o chá da cebolinha branca e dar para meu filho recém-nascido. Assim o fiz. Naquele tempo, era comum darmos chá para as crianças e o chá da cebolinha branca era muito conhecido. Pouco tempo depois que meu filhinho tomou o chá, um choro forte foi ouvido por todos que estavam em minha casa e a alegria tomou conta de nós.

Depois desse parto ainda tive outros filhos e hoje me sinto feliz por tê-los criado e eles terem me dado netos bonitos e saudáveis. Estes moram perto de minha casa, nas terras que comprei com o fruto do meu suor.


Maria de Fátima , 2º A

Texto baseado na entrevista com Dona Maria Zuíla da Silva, 70 anos,

agricultora e artesã, moradora da comunidade de Bom Sucesso, Russas.

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE LUZIA MARTINS

TEMPOS DIFÍCEIS, PORÉM FELIZES


Na minha mocidade as coisas e os costumes eram muito diferentes dos atuais. Lembro que com meus 20 anos só saía com minha mãe e ainda assim somente para as festas de igreja. Naquele tempo, morava num lugarzinho chamado Riachinho e sempre participávamos das festas da padroeira da comunidade vizinha, Pedras. Essas festas eram muito boas, a comunidade enchia e animava a igreja. Não perdíamos por nada.

Foi numa dessas que conheci o grande amor da minha vida, Nicácio Jorge. Jamais tinha visto um rapaz tão bonito como aquele e com um terço na mão. Ele então veio conversar comigo e começamos a namorar. Somente depois de muitos anos de namoro e respeito, casamo-nos para viver uma vida de renúncias, mas também de paz.

Nossa primeira casa, dada pelo Sr. Zé Silva, era de chão de barro e tinha um terreno enorme onde nós plantamos e colhemos o sustento por algum tempo. Mas o Bem – era assim que eu chamava o Nicácio – quis muito tentar a profissão de vaqueiro. Então fomos morar numa fazenda muito grande esperando que as coisas melhorassem. No entanto daquela terra não podíamos tirar alimento algum, não nos era permitido plantar. Voltamos, então, para a nossa primeira casa.

A partir de então tive cinco filhos, uma morreu de doença de criança. Até hoje penso que foi por causa do nascimento dos dentes, assim diziam os mais antigos. Criados com muita dificuldade, nossos filhos aprenderam algumas lições com os dias difíceis e outras tantas, com a palmatória.

Depois de treze anos, construímos nossa casa na Malacacheta. Lá, além de plantarmos, fazíamos também trabalhos artesanais: chapéus, tapetes e bolsas de palha, coxins de retalhos e de fuxico. Depois vendíamos tudo em Pedras e comprávamos a comida que faltava.

A viagem até Pedras era sofrida, mas toda a família ia. Não tínhamos carroça e um jumentinho era o nosso transporte. Lembro que as duas meninas iam uma de cada lado dentro do caçoá, onde carregávamos também mercadorias; o menino ia montado no jumento no meio do caçoá e a mais novinha, nos meus braços. Ah, os maiores adoravam essa viagem! Além de andar de jumento, viam coisas e gente diferente nas Pedras.

Lembro que as roupas que meus filhos vestiam eram feitas à mão por mim mesma. Aquilo dava muito trabalho. Certa vez, me chateei porque não terminei uma roupa a tempo e então decidi comprar uma máquina, que me custou quinze mil réis. Facilitou o meu trabalho, mas ainda era cansativo porque ela era à manivela. Somente muito tempo depois adquiri uma máquina a pedal, essa sim era boa!

Depois de nossos filhos já casados e de já termos lutado e vivido muitos dias felizes, meu esposo adoeceu e isso me entristeceu bastante. Tivemos que ir morar na cidade para que ele tivesse um acesso mais fácil ao hospital. Infelizmente ele não conseguiu superar a doença e faleceu.

Lembro dele com muito carinho, especialmente às seis horas da noite, horário que nos reuníamos diariamente para rezar o terço. Mas são lembranças tão boas e tão constantes as que tenho dele, que sinto como se ainda estivesse ao meu lado em alguns momentos.



Maria das Graças de Sousa Silva, 3º B.

Texto escrito com base na entrevista com

Luzia Martins de Sousa, 87 anos,

agricultora aposentada.

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE JOSÉ BENEDITO

VIDA DE AGRICULTOR


Tive uma vida muito difícil. Eu e meus dois irmãos Isaura e Franciné aprendemos desde muito pequenos a trabalhar na roça, único ofício possível em nossa comunidade. Naquele tempo não havia escola em nossa comunidade, por isso cedo as crianças iam para a lida. Hoje, por meu próprio mérito, escrevo com destreza.

Trabalhava para ajudar meu pai no corte de lenha, que colocava no lombo de um jumento e muitas léguas com ele caminhava. Saía da Lagoa das Bestas, atual Santa Terezinha, até Russas para vender a lenha e comprar comida.

Essas viagens se davam no auge da minha mocidade, tinha vinte e poucos anos. Eu caminhava 18 km de chão de terra batida e de veredas que o sol estreitava a caminho de Russas. Lembro que ficava felicíssimo por ganhar meus contos de réis e com eles comprava comida para oito dias. Essa vida sugava muito as minhas forças, mas jamais fui um homem de grandes posses.

Em uma de minhas andanças por Russas, conheci Antônia Lorença dos Santos Almeida, a “baixinha”. De cabelo muito comprido, ela era linda!!! Morava onde hoje fica o planalto, em Russas. Namoramos pouco tempo e em fevereiro de 1971 nos casamos. Levei-a para morar comigo em Lagoa das Bestas, mas Deus a levou em março de 1975, junto com meu filhinho durante um parto cheio de complicações. Esse foi um dos golpes mais fortes que levei da vida.

Naquele tempo, não havia atendimento médico como existe hoje. As parteiras, com o seu saber, faziam o que podiam, mas nem sempre era o suficiente. Pensei em levar minha companheira com muitas dores até a cidade, mas percebi que ela não iria suportar a longa viagem. Quando alguém estava enfermo naquele lugar, era levado até a cidade em uma rede a qual era carregada por seis homens da comunidade que se revezavam ao longo do caminho. Era tudo muito difícil.

Depois do falecimento, ao poucos consegui refazer minha vida e me casei pela segunda vez com uma prima de segundo grau. Era uma mulher de grandes virtudes e com ela vivo até hoje, nos meus 33 anos de casamento.

Sinto-me muito feliz por ver meus 15 filhos criados. Dentre eles, oito são do coração e sete são de sangue. Todos são meu auxílio, deles tenho a atenção e o respeito. E digo mais:

Caros senhores que me leem,

Eis o que tenho a lhes dizer,

Sou pequeno agricultor,

De 66 anos a viver

Décadas de dificuldade

Mas sem esperança perder.


Maria Cirnicleide França, 3º A.

Texto baseado na entrevista com José Benedito de Almeida, 66 anos,

agricultor aposentado.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE DONA GERALDINA


Dona Geraldina e sua máquina ELGIN

OFÍCIO DE COSTUREIRA

Quando eu era bem mais jovem costurava muito, chegando até a passar noites em claro naquela atividade para tentar atender as encomendas. Nessa época, morava no Junco, comunidade próxima a Pedras, na minha terra natal Russas. Quando se aproximava o período da festa da padroeira de Pedras, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, as encomendas cresciam mais ainda. Vinha parente de tudo o quanto é canto só para participar das festividades. A comunidade ficava numa alegria só.

Atualmente, quando as pessoas querem uma roupa, rapidamente vão a uma loja e compram algo muito sofisticado, mas naquela época as coisas não eram bem assim. Roupa tinha que ser sob encomenda. Então, não querendo ouvir reclamação das minhas clientes, fazia de tudo para entregar os pedidos a tempo. Meus velhos companheiros de madrugadas em claro eram um radiozinho ABC à pilha – não havia energia em minha comunidade – e um cafezinho para afastar o sono.

Meu amado esposo implicava com a minha teimosia de costurar ao invés de dormir. Nonazito, assim era conhecido, não gostava daquele meu costume. Na verdade, não achava certo eu perder o sono sagrado da noite e no dia seguinte realizar o serviço da casa. Não era nada bom o cansaço daqueles dias, mas me sentia feliz por proporcionar algo a mais aos meus filhos.

Recordo-me como se fosse hoje da minha primeira máquina de costura, era uma máquina à manivela. Somente muito tempo depois, consegui comprar uma a pedal que facilitou um pouco mais o meu trabalho. Até hoje ainda a tenho comigo, é uma ELGIN com mais de 50 anos. Não a utilizo mais porque infelizmente a vista não me permite, mas bem que gostaria de matar a saudade daquele ofício e dos dias que dei aulas de corte e costura a jovens de minha comunidade.

Minha máquina ELGIN é também testemunha dos dias difíceis que passei após o falecimento de Nonazito. Tive que cuidar dos meus quatro filhos sem ele ao meu lado, mas com a graça de Deus venci. Cheguei até a amarrar algum ao pé da máquina para conseguir concluir meus trabalhos. Não era nada fácil, mas tinha que fazer.

Hoje, sinto-me satisfeita por ver meus filhos felizes e bem encaminhados. Apesar da perda de um deles, que espero estar ao lado de Deus, tenho conseguido aceitar o destino e pensar que o que eu podia ter feito enquanto ele esteve ao meu lado, eu fiz e isso me conforta.



Karina Raquel de Lima Sousa, 1º B.

Texto baseado na entrevista com Maria Geraldina Tavares, 83 anos,

costureira aposentada, moradora de Pedras, distrito de Russas.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE MARIA VALDENIZA DE ARAÚJO



RECORDAÇÕES DE UMA FARINHADA

Aqueles dias eram muito diferentes dos atuais. Tudo era mais calmo e parecíamos ser mais felizes. Nossa renda era baseada na agricultura e por isso trabalhávamos muito. Acordávamos com o canto do galo e passávamos o dia inteiro na lida.
Havia ainda um outro tipo de trabalho que eu adorava, aquele desenvolvido nas casas de farinha. As chamadas farinhadas aconteciam nos meses de agosto e setembro. Enquanto descascávamos e ralávamos mandioca, muitas histórias escutávamos e muitas brincadeiras também aconteciam. Era uma festa.
Na safra do ano de 1972, quando eu e minha filha de seis anos íamos para a casa de farinha, fomos surpreendidas por algumas vacas no meio do caminho. Ao caminharmos, uma delas veio repentinamente em nossa direção. Gritei desesperada:
- Valha-me, Deus!! Corra, filha.
Corri e subi em uma oiticica. Mas minha filha, coitadinha, não teve a mesma sorte, ficou correndo ao redor de uma árvore e a vaca atrás. Depois de cansar a criança, acertou-lhe a cabeça e derrubou-a no chão. Minha filha não chorava, não gritava, nada fazia. Parecia estar morta e o bicho continuava com as patas nas coxas da menina, urrando sem parar. Para completar o quadro, as outras vacas vieram rodear a garota. Naquele momento, a angústia invadiu meu coração e um choro desesperado tomou conta de mim.
Desci sem muita esperança de reanimar minha filha. Nessa hora, a vaca enraivada veio de encontro a mim com aqueles chifres em minha direção. “Era o meu fim”, pensei por um instante. Percebi, então, que a vaca havia enfiado os chifres apenas no meu vestido frouxo e saiu me arrastando pelo matagal até uma cacimba.
Gritava muito pedindo a ajuda que parecia não vir nunca mais. Até que meu marido escutou os urros do gado e saiu correndo acompanhado por seu cachorro que rapidamente ganhou distância e ao me ver fez com que a vaca me soltasse e logo depois espantou aquelas que rodeavam minha filha. Alguns minutos depois, a garota se reanimou, meus nervos se acalmaram e continuamos nossa viagem para a farinhada.
Naquela noite, a história da vaca que nos atacou fez muito sucesso. Todos quiseram saber os mínimos detalhes, que contei repetidamente até terminarmos os trabalhos daquele dia. Todos os santos do céu ouviram os agradecimentos daquele povo por nossas vidas terem sido preservadas.





Roberta Luana da Conceição de Araújo Silva, 2º E.
Texto baseado na entrevista com Maria Valdeniza de Araújo, 67 anos,
moradora do Sítio Canto, distrito de Russas.

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE DONA GLÓRIA BANDEIRA

AS PRIMEIRAS SÉRIES NA ESCOLA PADRE MARCONDES


Aos sete anos comecei a estudar. Naquele tempo, iniciávamos a caminhada escolar logo na alfabetização. Lembro-me bastante das minhas queridas professoras, assim como me recordo da professora da terceira série considerada malvada. Nunca tinha sido sua aluna, mas acreditava piamente naquilo, e por isso repeti dois anos a segunda série para não ter que enfrentá-la.

Chorei, chorei muito para não passar para a série seguinte e ficar com minha amiga do peito que se chamava Helena. Era uma garota adorável e até hoje me identifico com seu jeito espontâneo de ser, alegre e extrovertido.

Hoje não entendo como aquele episódio de repetir a segunda série pode acontecer, mas aconteceu. Ideias de criança são realmente engraçadas. Um dia eu teria mesmo que passar para a série seguinte, mas não compreendia isso. Talvez tivesse sido melhor que o tempo tivesse estacionado ali com minha infância povoada de sonhos e com amigas que cultivavam uma amizade tão pura e fiel.

As carteiras naquela época eram constituídas de dois assentos e sempre sentávamos Helena e eu. Era comum não deixar outra pessoa sentar perto de mim. Se alguém ensaiasse tal coisa, já era motivo para confusão, mas nada comparado às brigas que hoje vemos em algumas escolas. Nesse tempo, não existia direção na escola onde estudava, no entanto os alunos não bagunçavam nem desrespeitavam os professores.

Era magnífico cantar o Hino Nacional nas quartas-feiras. Todos nas filas e bem organizados mostrávamos respeito à pátria. Orgulhava-me muito de ter uma escola, apesar da minha ser pequena, com apenas duas salas de aula e dois banheiros. Ela foi construída com a ajuda do Padre Marcondes, por isso a escola recebeu seu nome como forma de homenageá-lo.

Como não podia passar a vida inteira na segunda série, passei finalmente para a terceira. Que sorte eu tive! Uma nova professora assumiu essa série e então me enchi de vontade de conhecê-la. Por motivos pessoais ela não concluiu o ano letivo, e em seu posto ficou a D. Luzirene, uma mulher de fibra, mas muito meiga e carinhosa por quem me apaixonei.

A Escola Padre Marcondes cresceu com o passar dos anos e hoje existe um novo colégio na comunidade de Jardim de São José (Russas). O prédio antigo, que muitas lembranças me traz, ainda existe e planeja-se funcionarem no local alguns projetos educacionais. Atualmente ensino as crianças da creche e realizo meu trabalho com muito amor e dedicação, procurando algumas vezes entender os pequeninos de acordo com as minhas saudosas experiências infantis.


Glória Angélica Bandeira Chaves, aluna do 3º E.

Texto escrito com base na entrevista com

Maria Glória Bandeira, 44 anos,

moradora do Jardim de São José, distrito de Russas



PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE DONA LOURDES RAMALHO



PHARMACIA RAMALHO


A PHARMACIA DO MEU PAI


Há cerca de 80 anos, tudo era muito precário na minha querida Russas, inclusive o acesso à saúde. Se hoje achamos que as coisas não vão bem nessa área, imagine naqueles dias quando não havia postos de saúde como há hoje nem médicos de plantão no hospital para uma emergência. No que diz respeito às farmácias, havia poucas por aqui e entre elas estava a “pharmácia” do meu pai, a única a ter farmacêutico especializado, formado na Faculdade do Rio de Janeiro, o Senhor José Ramalho. Meu pai era muito bonito, charmoso e realizava seu trabalho com muita competência. Porém havia bastante trabalho e ele precisava de alguém para ajudá-lo. Percebendo que eu levava jeito para o negócio e sendo eu a filha mais velha, convenceu-me a trabalhar ao seu lado.

Para mim aquela decisão foi inicialmente terrível, pois meu grande sonho era estudar. Passei dias e noites pensando e cheguei até a chorar várias vezes por ter que abrir mão dos estudos. Como não tinha outra saída, aos 15 anos iniciei meus trabalhos ao lado do meu pai que foi meu primeiro e maior professor nesse ramo.

Trabalhar na “pharmácia” exigiu de mim muitas renúncias. As tarefas eram constantes e o tempo para o lazer era muito reduzido. Naquela época, não havia postos de saúde nem hospital como existem hoje. Os médicos eram escassos e as pessoas tentavam resolver seus problemas de saúde com o farmacêutico. Tentávamos sempre fazer o melhor pelas pessoas que nos procuravam para remediar os mais diferentes tipos de enfermidades. Havia aquelas que realmente chegavam a me arrepiar. Lembro bem que minha mãe adorava me elogiar por causa do trabalho e eu ficava enrubecida. Achava que não tinha tanta competência para isso. Procurava sempre dar o melhor de mim.

Não posso esquecer que, além desse trabalho por vezes cansativo, sempre reservava um tempo para as tarefas religiosas. Dentre elas, sempre gostei de orientar os pequeninos no catecismo e ainda tinha um lugar no coral. Na época, cantávamos no coro, lá no alto da igreja matriz. Ah, como eu adorava cantar! Sentir-me parte daquele coro e ouvir nossas vozes ressoarem num latim vibrante, enchia minha alma de calor. Era simplesmente lindo.

Já experiente no meu ofício, senti-me sem chão com o falecimento do meu querido pai. Mesmo com o baque, tive que encontrar forças para dar continuidade ao que ele construíra com muita dedicação. Tive, então, que fazer um curso na capital para poder tomar a frente da “pharmácia”. Minha irmã Dolores e eu concluímos na mesma turma e trabalhamos para que a fonte de renda de nossa família permanecesse de pé.

Hoje, esse prédio que é a nossa “pharmácia”, ainda tem o cheiro daqueles primeiros dias de muito trabalho e também de satisfação. A fachada e a mobília são conservadas, diferente das modernas farmácias que estão chegando a nossa cidade. E eu continuo atendendo, não como antes, mas sempre que alguém me procura, atendo com presteza. Sinto-me muito feliz quando recebo pessoas a quem já ajudei e delas recebo aquele abraço caloroso. Muitas ficam espantadas por, no auge dos meus 95 anos, ainda estar lúcida e ativa. É muito bom poder ajudar. Isso enche o nosso coração de um sentimento bom e nos faz muito felizes.




Dona Lourdes Ramalho no centro
e alguns alunos participantes do projeto.



Leiriara da Costa Sousa, aluna do 2º E.

Texto escrito com base na entrevista com

Maria de Lourdes Ramalho de Alarcon e Santiago,

95 anos, responsável pela Pharmácia Ramalho,

moradora da cidade de Russas desde que nasceu.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE DONA LIQUINHA

José Ferreira de Matos
Esposo de Dona Liquinha

UM AMOR MAIOR QUE EU


Naquele tempo, a vida e os costumes eram bem diferentes dos atuais. Os namoros eram mais discretos e conservadores. Beijos apenas na testa, pois assim não teria maldade, nem malícia. Comigo não foi diferente. Conheci meu príncipe na mercearia de meu pai, ele ia lá apenas para me ver. Apesar de ser forte e verdadeiro, era um amor proibido, pois ele tinha a pele morena e meus pais o rejeitavam. Ele era realmente muito, muito bonito e qualquer esforço era válido para encontrá-lo.

Passamos então a nos encontrar às escondidas ou, mais comumente, nos comunicávamos através de cartas singelas que eu lia antes de ir dormir com uma luz fraquinha de um vidro cheio de caga-fogos. A cada linha meu coração palpitava, minhas pernas tremiam e logo após a leitura vinha o ritual de sempre: rasgava as cartas em minúsculos pedacinhos para que minha mãe não desconfiasse de nada.

Certo dia, ao mexer nas minhas coisas, minha mãe achou uma carta indecente, só que não era minha e sim de uma amiga que tinha pedido que eu a guardasse. Mas ela não acreditou em minha explicação e passou a desconfiar de mim e das intenções do rapaz. Mas isso não me intimidou. Afinal de contas, mais difícil do que ler as cartas à noite, era ir ao encontro de meu amado. Sempre que tinha uma chance, não deixava escapá-la.

Os encontros aconteciam durante o dia, quando eu ia a cavalo ou a pé à casa de uma amiga que deixava encontrarmo-nos na cozinha. Essa situação se prolongou durante quatro anos até que se tornou insustentável e resolvi fugir. Ao fugir, fui ajudada por um casal de amigos que me acolheu em sua casa até que se realizasse o casamento. Com minha saída da casa de meus pais, logo surgiu o boato de que eu estava grávida, o que não era verdade, pois minha primeira filhinha só veio nascer nove anos depois.

Em nenhum momento daquela empreitada tive medo do que pudesse me acontecer, pois eu tinha certeza do que queria e só ficaria sossegada quando me visse casada com ele. O monsenhor colocou empecilhos para a realização do casório, mas minhas ameaças o fizeram crer que o casamento era a melhor saída, pois ou ele me casava ou eu me "juntava". A celebração ocorreu em 8 de novembro de 1941. Infelizmente, nove meses depois, me via todas as noites ao lado de minha cama rezando uma oração para que Nossa Senhora o protegesse no campo de batalha. Meu esposo estava entre os homens convocados para a guerra.

Passadas algumas semanas, Nossa Senhora ouviu minhas preces e fez com que ele voltasse antes de chegar lá. Ao vê-lo de volta, meu coração vibrou de alegria. Quando avistei meu esposo vindo a cavalo em direção ao nosso lar, meus olhos encheram-se de lágrimas, minhas pernas tremeram e meu coração bateu mais forte.

A partir de então, retomamos nossos afazeres de costume. Com muita simplicidade cuidamos da nossa mercearia e das nossas plantações, em especial dos laranjais. Naqueles dias de tanta fartura, ele adorava trazer-me aquelas laranjas tão doces que embeveciam meu paladar. Devido à grande produção da fruta da nossa terra, a laranja de Russas, tornamo-nos líderes da ANCAR, uma associação dos agricultores da época.

Além de toda essa atividade ainda havia tempo para o futebol. Meu companheiro adorava jogar bola e organizou um time. Quando acontecia jogo em nossa comunidade, a Ingá, o público, ao redor da quadra, prestigiava com gosto aquelas partidas tão disputadas. Naquela época, parecia que o tempo era mais amigo do que hoje. Éramos envolvidos em várias atividades, mas nunca faltava tempo para cuidarmos um do outro. Não posso esquecer-me das deliciosas comidas que preparava para ele quando terminavam as partidas ou quando ele chegava de viagem cansado.

Às seis horas da noite, era sagrado o santo terço. Meu marido largava tudo e até mesmo a mercearia, pedindo licença aos que ali se encontravam para participar desse momento que era de grande importância. Não se preocupava com o que pudesse acontecer ou com quem estava naquele ambiente. As pessoas de nossa época eram bem mais honestas e humildes.

Somente após 5 anos do casamento, meu pai veio nos visitar para uma reconciliação e daí em diante meu esposo o acompanhava em viagens a negócios. Certa vez, tive de encontrar um bilhete em um de seus bolsos e lhe perguntei do que se tratava. Ele, com toda sinceridade, me contou de uma mulher que conhecera para as bandas de Caucaia a qual enchera-se de esperanças por ele. Não pude deixar de notar a delicadeza de sua letra realmente muito bela, o que me deixou ainda mais enciumada. No entanto, ele me garantiu que não desejava nada com ela e assim resolvi esquecer tal acontecimento.

Quando estava perto de completar mais ou menos 8 anos de nossa união tive o prazer de receber em minha casa uma pessoa que há muito não via. Ali na minha frente estava ela, minha mãe, de quem depois de muito tempo pude receber o perdão. Após esse acontecimento, finalmente veio o primeiro fruto do nosso amor que chamamos de Verônica. Com outros quatro filhos Deus ainda me presenteou.

No ano de 1967 tive que dizer adeus ao meu único e verdadeiro amor. Mas o tempo não foi suficiente para que minhas lembranças e meus sentimentos fossem apagados. Ele sempre foi e será meu príncipe. Com esse acontecimento, larguei meu interior e vim para a cidade com meus filhos. Além da perda do meu companheiro e das dificuldades enfrentadas, em 1974, devido à grande cheia, acabei perdendo os laranjais que restaram em nosso sítio. As pobres laranjeiras ficaram em baixo d'água por 30 dias e, como pudia prever, não resistiram.

Hoje, muitos anos depois, considero-me feliz por ter vencido todos os obstáculos após a perda do meu amor e ter orientado bem meus filhos. Sinto uma enorme satisfação em contar minha história principalmente para grupos de adolescentes como meus netos, e sempre previno a eles: príncipes devem cuidar bem de suas princesas e o mais importante "beijos, apenas na testa, pois é sem maldade e sem malícia”.



Texto escrito coletivamente pelos alunos do projeto Conta que eu conto,

baseado na entrevista com Maria Rodrigues de Mendonça, 88 anos,

costureira aposentada, moradora do município de Russas.


OFICINA 6





Memória é a faculdade épica par excelence.”

Walter Benjamin



Após a primeira entrevista realizada por todos os alunos do grupo, reunimo-nos para registrar coletivamente o que foi relatado por D. Liquinha. Utilizando a ferramenta google docs, todos os alunos deram sua contribuição para o registro escrito das memórias da primeira entrevistada.


OFICINA 5





O escutador torna-se responsável

eticamente pela narrativa e pelo narrador,

não pode abandoná-lo.”

Ecléa Bosi


Realizamos a primeira entrevista do projeto. Foi encantador ouvir e ver o brilho nos olhos de D. Liquinha, 88 anos, ao relembrar e contar de forma vibrante sua história de vida. Os alunos ouviram com atenção cada detalhe contado por essa senhora que com suas habilidosas mãos confeccionou a colcha de fuxico ao redor da qual nos reunimos durante todas as oficinas.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

OFICINA 4







O narrador conta o que ele extrai da experiência –

sua própria ou contada por outros. E, de volta, ele

a torna experiência daqueles que ouvem a sua história.”

Walter Benjamin


Iniciamos a oficina 4 com a montagem de quebra-cabeças retomando as apresentações da oficina anterior. Em seguida, lemos e analisamos textos de memórias bastante envolventes e percebemos a linguagem poética presente nesse gênero textual. Recebemos orientações sobre como realizar as entrevistas com idosos e foram dadas também algumas sugestões de idosos conhecidos que poderiam nos contar muitos fatos interessantes vividos por eles.



OFICINA 3






A contação de uma história utilizando um barbante que ia passando entre os alunos que estavam em círculo foi a forma descontraída de iniciar a terceira oficina. A partir dessa atividade realizamos leituras em grupo sobre as características do gênero memórias literárias e lemos ainda textos desse gênero. Tudo o que foi lido e debatido nas equipes foi socializado ao final da oficina.