PROJETO CONTA QUE EU CONTO

O projeto “Conta que eu conto” busca aproximar os estudantes do texto literário, em especial memórias literárias, a fim de explorar, além das características do gênero, outras possibilidades tais como a emoção, a criatividade, a intuição, as sensações, o aspecto lúdico e interativo. Além disso, propõe o encontro entre os jovens e destes com outras gerações para ouvir dos mais velhos histórias de vida, culturais ou sociais. Estas podem constituir um importante acervo de memórias e proporcionar aos jovens o resgate de sua identidade cultural bem como a percepção de que o tempo presente, momento sócio-histórico no qual nos situamos, é fruto dos caminhos e percalços do passado. Em outras palavras, conhecer “nossas” histórias significa conhecer a nós mesmos.

Uma outra possibilidade surge neste ponto: a percepção do valor do idoso em nossa sociedade. Uma sociedade que oprime a velhice de múltiplas formas e se apega exageradamente ao moderno e ao que é de consumo. Sufoca as lembranças e desmerece a função social do idoso, fonte de onde jorra a essência da cultura. (CHAUÍ in BOSI: 1994, p. 18)

Perceber jovens tocados ou seduzidos pelas narrativas e personagens das histórias significará uma importante conquista do Colégio Estadual Governador Flávio Marcílio na formação de leitores e de sujeitos mais sensíveis e portadores de múltiplas referências culturais e afetivas.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE ANTONIO RODRIGUES FILHO



RUSSAS PERDEU, MAS NÃO DEU BRECHA


Desde a minha infância a minha grande paixão foi o esporte. Quando criança já trabalhava, mas sempre arranjava espaço para o futebol que me enchia de satisfação. Lembro-me bem que aos domingos meus pais só me deixavam jogar bola depois de ter ido à missa às 4h da manhã, na igreja matriz. Minha família era cumpridora das doutrinas da igreja e, por isso, a missa do domingo era sagrada.

Na adolescência, passei a estudar no Ginásio Jaguaribano, atual Colégio Estadual Governador Flávio Marcílio, uma das escolas mais antigas da cidade de Russas. Nessa escola, além de me entregar de vez aos treinos para ganhar as competições, que antigamente eram muito mais acirradas, descobri uma segunda paixão. Comecei a ajudar a minha querida professora Dona Naninha que lecionava francês e matemática e graças à oportunidade que ela me deu de ajudá-la nas correções e em outros trabalhos seus, e também por me incentivar a dar aulas no futuro, fez despertar em mim o gosto por lecionar. Naquele tempo, podia sentir a sede de conhecimento que os alunos tinham e por isso decidi que um dia iria ensinar profissionalmente.

Vivi vários episódios engraçados durante a minha trajetória de aluno esportista. Um dos que mais me marcaram aconteceu num campeonato que disputamos em Fortaleza no qual os alunos do Ginásio Jaguaribano e mais algumas alunas do colégio Patronato, atual UNECIM, representaram nossa querida cidade de Russas. As irmãs cordimarianas, que dirigiam o colégio Patronato, só liberaram as meninas para jogar com uma condição: os shorts teriam que ser abaixo do joelho.

Durante o deslocamento para o local onde seria realizado o campeonato, permanecemos ansiosos para entrarmos em campo. No evento, fizemos o melhor que podíamos. Algumas equipes ganharam, outras perderam. Não lembro bem dos detalhes, mas uma coisa não esquecerei. Embora as meninas do Patronato não tenham tido um bom resultado no jogo, fizeram tanto sucesso que foram manchete no jornal de Fortaleza. A Tribuna do Ceará publicou o seguinte: “Russas perdeu, mas não deu brecha”. Foi muito engraçado!!

Muitos campeonatos aconteceram depois desse e participei de todos os que pude. Até terminar o curso que hoje equivaleria ao ensino médio, joguei muito e estudei muito mais. Devido ao meu esforço fui aprovado no concurso do Banco Brasil. Lá trabalhei por muitos anos e adquiri muita experiência, no entanto não me sentia realizado. Nesse período, dava umas aulas no período da noite, mas aquilo não era suficiente para mim. Certo dia, abri mão do emprego de bancário para dedicar-me ao que realmente me fazia feliz: o esporte e a sala de aula.

A partir de então, tudo ganhou cores novas em minha vida. Tive o privilégio de ser nomeado o Primeiro Diretor de Esporte do município e por isso dediquei-me de corpo e alma àquela função. Nesse período, passei a ensinar como professor de educação física e então pude motivar muitos jovens a praticar esporte, desenvolver seus talentos e fazê-los campeões.

Atualmente não leciono mais nessa área. Passei agora a ensinar matemática, matéria que ensinei na adolescência. Sinto saudade dos tempos bons que vivi, mas me sinto feliz e realizado pelas vitórias que obtive em minha vida.


Suelly Cristina da Silva Lima, 3º H.

Texto baseado na entrevista com Antônio Rodrigues Filho, 65 anos,

professor do Colégio Estadual.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE DONA OGARITA



AMOR PERFEITO

VITÓRIA RÉGIA

O que mais gosto de recordar daquele tempo são minhas festas de juventude, principalmente as de igreja. Ah! Estas não poderia jamais esquecer. Dividíamo-nos em dois grupos para fazer a festa após a missa. Lembro como se fosse hoje todo o meu grupo correndo ao redor da coluna da hora e chamando a atenção de todos que ali paravam e se sentiam convidados a cantar conosco:

"É,É,É,É
AMOR PERFEITO....

E SE NÃO FOR PODE VIRAR QUE DÁ PRA SER,
O NOSSO BLOCO ABAFA MESMO QUALQUER OUTRO,
E ESTAMOS LOUCOS PRA VENCER
X

O AMOR PERFEITO É UM BLOCO FORTE
SEMPRE HÁ DE SER

É,É,É,É,........"



O outro partido de nome Vitória Régia não emocionava tanto, eles pareciam reis e rainhas, só podia chegar perto deles quem tinha permissão. Já o amor perfeito não, nós éramos do povo e sempre nos divertíamos correndo na direção dos caminhoneiros que paravam à procura de algo. Naquela época, a avenida principal de nossa cidade, a Dom Lino, era também BR 116 e portanto caminhoneiros de vários lugares do país passavam por dentro do município.

Certo dia, um caminhoneiro se decepcionou com a recepção na barraca do grupo Vitória Régia, pois um de seus integrantes falou baixinho algo parecido com..."lá vem esse povo baixo andando entre a gente". E isso foi o bastante para que nosso novo colega se juntasse a nós.
Depois desse episódio todo caminhoneiro que passava pela cidade revelava uma espécie de código que somente nós sabíamos:"VOCÊS SÃO DA TURMA DO ÓLEO?". Se respondêssemos que sim, isso significava que a nossa turma era justamente a do povo. O caminhoneiro que havia sido destratado na barraca do grupo adversário sempre aconselhava a quem passasse por nossa cidade a visitar a barraca do amor perfeito. Aquela era uma parada obrigatória.
Alguns dias depois veio um grupo de maçons para uma inauguração. Quando soubemos de sua chegada na cidade, preparamos nossa equipe para recebê-los, só que de uma foma especial para que gostassem e voltassem sempre que pudessem. Nossa equipe se vestiu de duas cores: PRETO e BRANCO. Adequamos nossas roupas às roupas dos maçons, só que sem ninguém desconfiar do nosso intuito. Chegada a noite lá vinham eles todos juntos, era uma equipe grande e, como sempre fazíamos com os visitantes, corremos para recebê-los. Era um grupo simpático e logo nos enturmamos. Após algumas horas de conversa e muitos risos, um da turma dos visitantes percebeu uma “mera coincidência”: nossas roupas estavam iguais as deles, da mesma cor, e isso lhes fez gostar ainda mais de nossa equipe.

No encerramento da festa, e após o cálculo do apurado, soubemos que nossa equipe se revelara com uma quantia bem satisfatória. A vitória era nossa, e como premio tivemos um baile dançante. Ah, que baile.... Ao som da banda “pau e corda” a galera se divertia cantando, dançando, conversando e até saboreando aloá, a bebida favorita da época, que era feita de milho e armazenada em potes. Sarrabuivámos bastante, ou seja, brincávamos muito e as paqueras aconteciam.

Meu primeiro namoro foi aos 18 anos. Ele se chamava Anesion e sempre que podia vinha até minha casa. Era engraçado, minha mãe sempre estava por perto, na verdade bem perto. Ela colocava sua cadeira entre a minha e a dele e assim ficávamos até da hora dele ir embora.

Certa vez fui convidada a ir ao sereno de um baile, isto é, observar um pouco as pessoas que se encontravam do lado de fora da festa a qual normalmente acontecia em casa de família. Estava eu então na janela da casa a observar as pessoas que por ali se encontravam quando o Capitão Assis que por mim tinha carinho – ele era meu conhecido de muito tempo – mandou me chamar para que dançássemos um chote. Ele sabia que eu adorava dançar chote. Relutei de inicio dizendo-lhe que meu namorado, que ali não se encontrava, poderia não gostar. Nada o deteve. Lembro como se fosse hoje o que ele me disse: “- qual o problema? Quero dançar com você e não com ele". Aí não teve jeito... O chote embalava todo o salão:

"LÁ NO MEU PÉ DE SERRA …

DEIXEI FICAR MEU CORAÇÃO,

AI QUE SAUDADE EU TENHO,

EU VOU VOLTAR PRO MEU SERTÃO..."


Dancei como nunca, ele era um ótimo par. Todos ali presentes pararam para nos prestigiar. Entreguei-me à dança e ao chote que seguiam. É uma pena que alegria sempre dura pouco, pois no outro dia, como de costume andando pela praça, veio ao meu encontro uma amiga que me disse ter visto Anesion com uma cara muito brava, provavelmente com raiva de algo. Imediatamente me veio a lembrança da noite anterior. Pedi-lhe que por favor fosse até ele e lhe dissesse que eu queria vê-lo urgentemente.

Quando ele chegou até mim, contou-me o que já esperava. Ele não entendeu ser só uma dança, desconfiou, teve ciúmes e daí tomei uma grande decisão e lhe disse:

- Olhe, se você com toda esta história quer me arranjar pretexto para terminar, é melhor que acabemos por aqui, não gosto dessas coisas de desconfiança.

O coitado ficou pasmo, branco, mas o deixei na mesma hora. Daí em diante, apenas amizade entre nós dois. É engraçado que essa amizade se perpetua até hoje. Sempre que podia ele me mandava lembranças de onde estivesse. Certa vez, por engano, ele me ligou mas não sei como sua ligação acabou caindo em outra casa. Por sorte tratava-se de uma conhecida minha e, ao me ver passar pela rua, ela avisou-me de sua ligação. No mesmo instante eu corri e retornei. O danado estava no Rio de Janeiro e me ligava para me contar que estava sendo avô.... ri muito e colocamos os papos em dia.

Hoje, quando alguém me pergunta com quem moro, se sou casada... eu sempre respondo: casada não, mas moro com companhias insubstituíveis, melhores impossível. E querem saber quem são? Pois são apenas três: A MARIA, O MENINO E O FRANCISCO.... Maria é a Nossa Senhora lá do céu, o menino é o Jesus de Praga e o Francisco é o de Assis, que sempre protegem minha casa e com eles sou muito, mas muito feliz.


Rosinete da Silva Oliveira, 3º D.

Texto baseado na entrevista com Maria Ogarita de Sousa,83 anos ,

professora aposentada, moradora do município de Russas.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE ALFREDO NETO


A TERRA QUE SONHEI


Casei em outubro de 1956 com uma linda jovem e com ela vim conhecer Russas, cidade que considerava uma boa opção para morar. Então, cinco anos depois, minha esposa e eu decidimos nos mudar para essa cidade. Aqui construí minha família composta por seis filhos dos quais me orgulho e por quem tudo faço para vê-los feliz.

Ao chegar na cidade, comprei um prédio antigo que derrubei e reconstruí desde o primeiro tijolo. Nele moramos e tivemos nossos primeiros filhos. Na época, vendia queijo e peixe para sustentar a minha família. As feiras eram muito animadas no mercado velho, mas não me sentia feliz com aquele trabalho. Meu sonho era morar numa fazenda e cultivar a terra.

Finalmente, depois de quatro anos, consegui realizar meu desejo. Comprei um pequeno terreno na comunidade do Peixe. Por volta de 1967, aquela comunidade era apenas uma pequena vila, mas lá eu podia acordar com o som dos pássaros, calçar minhas alpergatas e balançar-me em uma rede. Que bom lembrar!!

Passado algum tempo, consegui comprar mais terras e aumentar minha produção plantando milho, feijão, algodão e mandioca. Tais produtos oferecia às comunidades vizinhas de Lagoa dos Cavalos, Bananeiras e Cipó. Por volta de 1970 comecei a trabalhar com o caju o que rendeu um bom dinheiro.

Lembro-me bem que onde havia apenas terras abandonadas, hoje é todo o meu patrimônio. Aquela terra sempre produziu frutos muito gostosos. A castanha do caju, tão apreciada, era vendida rapidamente.

Hoje, possuo cerca de cento e quarenta hectares de terra produzindo caju e me orgulho do que construí. Por outro lado, sinto-me triste por, mais cedo ou mais tarde, ter que abrir mão de tudo isso que consegui com tanto esforço por causa de um projeto do DNOCS que já se iniciou: a implantação da monocultura nessa região.



Fabrícia Kélvia da Silva Amorim, 1ºA.

Texto baseado na entrevista com Alfredo Neto, 74 anos,

morador da comunidade de Lagoa do Peixe.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE ALDA CORREIA LIMA



DE MENINA HABILIDOSA À MÃE CUIDADOSA


Bons tempos aqueles...!!! O respeito era imprescindível... E as famílias eram muito conservadoras, às vezes até demais. No meu caso, meu pai não me deixava estudar para que eu não me misturasse com os meninos. Porém queria que eu aprendesse, por isso me alfabetizou quando ainda era meninota e me ensinou a ler utilizando artigos de jornais.

Meu pai era um homem muito inteligente, frequentou a escola por somente seis meses, mas o que ele sabia naquela época superava o que muitos alunos de nível superior sabem hoje. Ele adorava ler. Sua imagem com um livro na mão é comum em minhas lembranças. Certa vez, ele advogou em favor de um amigo e ganhou o caso. Naquele tempo, como não havia advogado para esses lados, era comum isso acontecer.

Aos 14 anos aprendi a costurar sozinha e às escondidas, pois meus pais não me deixavam utilizar a máquina de minha mãe achando que eu iria quebrar tudo, afinal de contas uma máquina era uma peça muito valiosa naquela época. Então, quando eles iam dormir, depois do almoço, corria para os cajueiros para desmanchar meus vestidos e remontá-los. Costurava tudo à mão. Quando provei que era boa costureira, consegui comprar uma SINGER fabricada em 1910. Aquilo era uma beleza de máquina.

Em 1941, aos 21 anos, casei com um riograndense e fomos morar em uma casa de taipa de chão batido em Passagem de Russas. Lá tive dezenove filhos por quem fiz o que pude e um pouco mais. A mais velha escolheu nascer em uma data muito especial, no dia da passagem de Nossa Senhora de Fátima por Russas. Foi no dia 27 de novembro de 1953, quando todos foram para a cidade ver a festa. Eu fiquei sozinha em casa e entrei em trabalho de parto, passei seis horas à espera de alguém. Mas tudo deu certo e a criança nasceu com saúde.

Passados alguns anos, com mais filhos, trabalhávamos muito e éramos felizes. Havia fartura em nosso sítio. Plantávamos banana, limão, e muitas outras frutas, principalmente a laranja. Daquele nosso pedaço do paraíso, era comum sair de dois a três caminhões cheios de laranja que era revendida na capital.

Naquela época, ensinava meus filhos e outras crianças da vizinhança, à noite, em minha casa. Nossa sala se transformava numa verdadeira sala de aula. Apesar do meu cansaço, sentia-me feliz por realizar aquela tarefa diária. Sabia que ali estava o segredo para um futuro melhor para aqueles meninos e meninas.

Em tempo de festas de igreja, não havia cansaço que me impedisse de vir a pé de Passagem de Russas para o centro da cidade. Uma coisa que sempre vem a minha mente, quando lembro daquelas longas caminhadas, é a experiência dos mais velhos que diziam que se um cachorro ameaçasse as mulheres, bastava virar a barra do vestido que o cão pararia de latir. Acho que experimentei fazer isso certa vez e deu certo.

Lembro-me de que na época em que meus filhos mais velhos chegaram à idade de estudar, vim morar na cidade com eles, deixando os mais novos com meu amor no sítio. Passava a semana na cidade, mas quando chegava a sexta-feira, aprontava-me para voltar ao sítio para colocar as coisas em ordem e matar minhas saudades. Ah, essas eram muitas!! Respirar o ar daquele lugar e ver nossas plantas arreadas de deliciosos frutos renovava minhas forças para continuar naquela empreitada.

Hoje, sinto saudade daquele tempo tão bom e do meu companheiro que o destino levou. Mas todas as noites ele vem conversar comigo na minha cama e em seguida vai embora porque lá onde ele está é melhor do que aqui. Sou feliz porque meus filhos são bons e tenho o que todas as pessoas querem: uma grande família, uma saúde forte e uma grande história para contar.


Jonathan Martins, 1º D.

Texto baseado na entrevista com Dona Alda Correia Lima, 89 anos,

costureira aposentada, moradora do município de Russas.


PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE RAIMUNDA ENEDINA

DA LAGOA DE NOSSA SENHORA

À COMUNIDADE DE CABELO DE NEGO


Tive uma infância muito sofrida, mas eu era muito feliz na Lagoa de Nossa Senhora. Lembro das festas de igreja que ia com minha mãe. Ela colocava barraca para vender caldo e café. O dinheiro que ganhava era para o sustento dos filhos.

Um acontecimento que marcou esse período foi a chegada de uns peregrinos a nossa cidade. Eu tinha uns sete anos. Entre eles havia, ciganos, índios e vaqueiros que iam abrir a mata. Minha mãe aceitou o trabalho que eles propuseram: cozinhar para aquele grupo de homens. Minhas irmãs e eu, ainda pequenas, ficamos sob os cuidados de Aninha Papacunha – a senhora era assim conhecida porque colhia ipecaconha no meio do mato.

Com a volta de minha mãe de seu trabalho de cozinheira, fomos morar no beco do João Damião, atual beco do Leleo. Lembro bem que ali moravam umas famílias abastadas e eu perguntava à mamãe por que aquelas pessoas eram ricas. Ela, com seu jeito simples, dizia: “É porque eles tem cinquenta mil contos de réis no bolso.” Conformava-me com aquela resposta e ficava admirando seus belos cavalos de pelo reluzente exibindo uma corona, um acessório colocado nas costas do cavalo que tinha muitos bolsos. Acreditava que dentro daqueles bolsos havia muitas moedas valiosas.

Vivíamos da agricultura. Quando não tínhamos o que comer, os mais ricos que ali moravam não se recusavam a nos ajudar. Não era com coisa pouca. Eles enchiam cuias de alimento que matava a nossa fome.

O tempo passou e me tornei uma mulher. Casei a primeira vez com um bom homem chamado Gerardo e fomos morar no tabuleiro do Alto São João. Lá tive cinco filhos dele e juntos trabalhamos muito na agricultura. Eu era muito feliz; a comida era farta. Mas o destino me aprontou uma surpresa: meu marido faleceu. Fiquei criando meus quatro filhos sozinha até que decidi casar-me novamente e dividir meus problemas com mais alguém. No entanto, as coisas não aconteceram como eu esperava. Foram dez anos de sofrimento durante os quais tive mais quatro filhos. Até que certo dia ele me abandonou e então minha vida tomou outro rumo.

A partir de então meus filhos e eu trabalhamos muito. Eu cortava olho de carnaúba de cinco e meia da manhã às seis da noite. Chegava muito cansada, mas estava em paz. Também nesse período, meu filho mais velho aprendeu a fazer a massa para construção e o segundo passou a trabalhar no matadouro segurando a mão do boi em troca de alimento. Com isso, estava garantida a comida de todos.

Além de todo esse trabalho, ainda encontrávamos tempo para fazer tranças. Apurávamos um bom dinheiro no centro da cidade com a venda do nosso artesanato no armazém de Senhor Alexandre. Foi através desse senhor que consegui comprar um terreno de bom tamanho no lugar que hoje é conhecido como Cabelo de Nego.

Fui a primeira moradora da rua hoje conhecida como Travessa Antônio Gonçalves Ferreira. Quando cheguei nesse pedaço de terra, desmatei-o com a ajuda de meus filhos e construímos nossa casa. Em seguida, cultivamos milho e colhemos muita coisa boa. A terra era virgem e por isso lá brotou um maravilhoso milharal.

No início da rua havia uma árvore frondosa sobre a qual os mais antigos diziam que era do primeiro século. Nela amarravam reses para o corte e era conhecida como cabelo de nego. Em nossa cidade só havia três cabelos de nego como aquele: um na minha rua, outro em Lagoa das Bestas e o terceiro em Arroz, uma pequena comunidade no meio do mato.

Infelizmente, alguns anos atrás, a árvore tão bonita que deu origem ao nome da nossa comunidade foi arrancada para a construção de uma casa. Tentei impedir que aquilo acontecesse, mas não consegui.

Atualmente todos os meus filhos moram com suas famílias ao meu lado no pedaço de terra que comprei com tanto esforço e que com muito gosto dividi entre todos.

Josiane de Sousa Silva, 2º A

Texto baseado na entrevista com Raimunda Enedina da Silva,

moradora da comunidade de Cabelo de Nego.

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE MARIA ZUÍLA

O CHÁ DA CEBOLINHA BRANCA


Desde que me casei aos treze anos fui morar numa casa de taipa na comunidade de Bom Sucesso, em Russas. Só havia a minha casa e uma outra um pouco mais à frente. Ali tudo era mato, mas eu gostava muito porque podia cultivar a terra, criar animais e ainda fazer minhas tranças de palha de carnaúba e minhas louças de barro. Ah, essas últimas me davam um bom lucro. Vendíamos nosso artesanato na feira que era conhecida como “feira das tauba” e também para outras cidades. Com o apurado fui aos poucos comprando pedaços de terra para garantir o futuro dos meus filhos.

Ali também sofri muito. O trabalho era árduo e ainda tinha que cuidar de muitos filhos. Tive vinte, alguns se criaram, outros perdi. Naquela época, tudo era muito simples, tínhamos nossas crianças em casa e as parteiras nos ajudavam como podiam. Tive dois filhos que nasceram “de pé”, mas conseguiram com muito sufoco nascer com vida.

Um episódio daquele tempo me marcou muito. Estava grávida de oito meses e fui procurar meu marido que não era muito bom para mim. No caminho de volta para casa, um cachorro correu atrás de mim e, para me livrar dele, tive que correr me esforçando mais do que podia. O resultado não foi nada bom. A parto foi adiantado e a criança nasceu muito mole e sem chorar. Sem esperança de que ela fosse se criar, saí desesperada para a beira do rio e pedi a Deus que me ajudasse.

Ali, à margem do rio, debaixo do sol quente, senti um toque. Algo me dizia que eu devia fazer o chá da cebolinha branca e dar para meu filho recém-nascido. Assim o fiz. Naquele tempo, era comum darmos chá para as crianças e o chá da cebolinha branca era muito conhecido. Pouco tempo depois que meu filhinho tomou o chá, um choro forte foi ouvido por todos que estavam em minha casa e a alegria tomou conta de nós.

Depois desse parto ainda tive outros filhos e hoje me sinto feliz por tê-los criado e eles terem me dado netos bonitos e saudáveis. Estes moram perto de minha casa, nas terras que comprei com o fruto do meu suor.


Maria de Fátima , 2º A

Texto baseado na entrevista com Dona Maria Zuíla da Silva, 70 anos,

agricultora e artesã, moradora da comunidade de Bom Sucesso, Russas.

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE LUZIA MARTINS

TEMPOS DIFÍCEIS, PORÉM FELIZES


Na minha mocidade as coisas e os costumes eram muito diferentes dos atuais. Lembro que com meus 20 anos só saía com minha mãe e ainda assim somente para as festas de igreja. Naquele tempo, morava num lugarzinho chamado Riachinho e sempre participávamos das festas da padroeira da comunidade vizinha, Pedras. Essas festas eram muito boas, a comunidade enchia e animava a igreja. Não perdíamos por nada.

Foi numa dessas que conheci o grande amor da minha vida, Nicácio Jorge. Jamais tinha visto um rapaz tão bonito como aquele e com um terço na mão. Ele então veio conversar comigo e começamos a namorar. Somente depois de muitos anos de namoro e respeito, casamo-nos para viver uma vida de renúncias, mas também de paz.

Nossa primeira casa, dada pelo Sr. Zé Silva, era de chão de barro e tinha um terreno enorme onde nós plantamos e colhemos o sustento por algum tempo. Mas o Bem – era assim que eu chamava o Nicácio – quis muito tentar a profissão de vaqueiro. Então fomos morar numa fazenda muito grande esperando que as coisas melhorassem. No entanto daquela terra não podíamos tirar alimento algum, não nos era permitido plantar. Voltamos, então, para a nossa primeira casa.

A partir de então tive cinco filhos, uma morreu de doença de criança. Até hoje penso que foi por causa do nascimento dos dentes, assim diziam os mais antigos. Criados com muita dificuldade, nossos filhos aprenderam algumas lições com os dias difíceis e outras tantas, com a palmatória.

Depois de treze anos, construímos nossa casa na Malacacheta. Lá, além de plantarmos, fazíamos também trabalhos artesanais: chapéus, tapetes e bolsas de palha, coxins de retalhos e de fuxico. Depois vendíamos tudo em Pedras e comprávamos a comida que faltava.

A viagem até Pedras era sofrida, mas toda a família ia. Não tínhamos carroça e um jumentinho era o nosso transporte. Lembro que as duas meninas iam uma de cada lado dentro do caçoá, onde carregávamos também mercadorias; o menino ia montado no jumento no meio do caçoá e a mais novinha, nos meus braços. Ah, os maiores adoravam essa viagem! Além de andar de jumento, viam coisas e gente diferente nas Pedras.

Lembro que as roupas que meus filhos vestiam eram feitas à mão por mim mesma. Aquilo dava muito trabalho. Certa vez, me chateei porque não terminei uma roupa a tempo e então decidi comprar uma máquina, que me custou quinze mil réis. Facilitou o meu trabalho, mas ainda era cansativo porque ela era à manivela. Somente muito tempo depois adquiri uma máquina a pedal, essa sim era boa!

Depois de nossos filhos já casados e de já termos lutado e vivido muitos dias felizes, meu esposo adoeceu e isso me entristeceu bastante. Tivemos que ir morar na cidade para que ele tivesse um acesso mais fácil ao hospital. Infelizmente ele não conseguiu superar a doença e faleceu.

Lembro dele com muito carinho, especialmente às seis horas da noite, horário que nos reuníamos diariamente para rezar o terço. Mas são lembranças tão boas e tão constantes as que tenho dele, que sinto como se ainda estivesse ao meu lado em alguns momentos.



Maria das Graças de Sousa Silva, 3º B.

Texto escrito com base na entrevista com

Luzia Martins de Sousa, 87 anos,

agricultora aposentada.