PROJETO CONTA QUE EU CONTO

O projeto “Conta que eu conto” busca aproximar os estudantes do texto literário, em especial memórias literárias, a fim de explorar, além das características do gênero, outras possibilidades tais como a emoção, a criatividade, a intuição, as sensações, o aspecto lúdico e interativo. Além disso, propõe o encontro entre os jovens e destes com outras gerações para ouvir dos mais velhos histórias de vida, culturais ou sociais. Estas podem constituir um importante acervo de memórias e proporcionar aos jovens o resgate de sua identidade cultural bem como a percepção de que o tempo presente, momento sócio-histórico no qual nos situamos, é fruto dos caminhos e percalços do passado. Em outras palavras, conhecer “nossas” histórias significa conhecer a nós mesmos.

Uma outra possibilidade surge neste ponto: a percepção do valor do idoso em nossa sociedade. Uma sociedade que oprime a velhice de múltiplas formas e se apega exageradamente ao moderno e ao que é de consumo. Sufoca as lembranças e desmerece a função social do idoso, fonte de onde jorra a essência da cultura. (CHAUÍ in BOSI: 1994, p. 18)

Perceber jovens tocados ou seduzidos pelas narrativas e personagens das histórias significará uma importante conquista do Colégio Estadual Governador Flávio Marcílio na formação de leitores e de sujeitos mais sensíveis e portadores de múltiplas referências culturais e afetivas.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

PRODUÇÃO TEXTUAL - MEMÓRIAS DE DONA LIQUINHA

José Ferreira de Matos
Esposo de Dona Liquinha

UM AMOR MAIOR QUE EU


Naquele tempo, a vida e os costumes eram bem diferentes dos atuais. Os namoros eram mais discretos e conservadores. Beijos apenas na testa, pois assim não teria maldade, nem malícia. Comigo não foi diferente. Conheci meu príncipe na mercearia de meu pai, ele ia lá apenas para me ver. Apesar de ser forte e verdadeiro, era um amor proibido, pois ele tinha a pele morena e meus pais o rejeitavam. Ele era realmente muito, muito bonito e qualquer esforço era válido para encontrá-lo.

Passamos então a nos encontrar às escondidas ou, mais comumente, nos comunicávamos através de cartas singelas que eu lia antes de ir dormir com uma luz fraquinha de um vidro cheio de caga-fogos. A cada linha meu coração palpitava, minhas pernas tremiam e logo após a leitura vinha o ritual de sempre: rasgava as cartas em minúsculos pedacinhos para que minha mãe não desconfiasse de nada.

Certo dia, ao mexer nas minhas coisas, minha mãe achou uma carta indecente, só que não era minha e sim de uma amiga que tinha pedido que eu a guardasse. Mas ela não acreditou em minha explicação e passou a desconfiar de mim e das intenções do rapaz. Mas isso não me intimidou. Afinal de contas, mais difícil do que ler as cartas à noite, era ir ao encontro de meu amado. Sempre que tinha uma chance, não deixava escapá-la.

Os encontros aconteciam durante o dia, quando eu ia a cavalo ou a pé à casa de uma amiga que deixava encontrarmo-nos na cozinha. Essa situação se prolongou durante quatro anos até que se tornou insustentável e resolvi fugir. Ao fugir, fui ajudada por um casal de amigos que me acolheu em sua casa até que se realizasse o casamento. Com minha saída da casa de meus pais, logo surgiu o boato de que eu estava grávida, o que não era verdade, pois minha primeira filhinha só veio nascer nove anos depois.

Em nenhum momento daquela empreitada tive medo do que pudesse me acontecer, pois eu tinha certeza do que queria e só ficaria sossegada quando me visse casada com ele. O monsenhor colocou empecilhos para a realização do casório, mas minhas ameaças o fizeram crer que o casamento era a melhor saída, pois ou ele me casava ou eu me "juntava". A celebração ocorreu em 8 de novembro de 1941. Infelizmente, nove meses depois, me via todas as noites ao lado de minha cama rezando uma oração para que Nossa Senhora o protegesse no campo de batalha. Meu esposo estava entre os homens convocados para a guerra.

Passadas algumas semanas, Nossa Senhora ouviu minhas preces e fez com que ele voltasse antes de chegar lá. Ao vê-lo de volta, meu coração vibrou de alegria. Quando avistei meu esposo vindo a cavalo em direção ao nosso lar, meus olhos encheram-se de lágrimas, minhas pernas tremeram e meu coração bateu mais forte.

A partir de então, retomamos nossos afazeres de costume. Com muita simplicidade cuidamos da nossa mercearia e das nossas plantações, em especial dos laranjais. Naqueles dias de tanta fartura, ele adorava trazer-me aquelas laranjas tão doces que embeveciam meu paladar. Devido à grande produção da fruta da nossa terra, a laranja de Russas, tornamo-nos líderes da ANCAR, uma associação dos agricultores da época.

Além de toda essa atividade ainda havia tempo para o futebol. Meu companheiro adorava jogar bola e organizou um time. Quando acontecia jogo em nossa comunidade, a Ingá, o público, ao redor da quadra, prestigiava com gosto aquelas partidas tão disputadas. Naquela época, parecia que o tempo era mais amigo do que hoje. Éramos envolvidos em várias atividades, mas nunca faltava tempo para cuidarmos um do outro. Não posso esquecer-me das deliciosas comidas que preparava para ele quando terminavam as partidas ou quando ele chegava de viagem cansado.

Às seis horas da noite, era sagrado o santo terço. Meu marido largava tudo e até mesmo a mercearia, pedindo licença aos que ali se encontravam para participar desse momento que era de grande importância. Não se preocupava com o que pudesse acontecer ou com quem estava naquele ambiente. As pessoas de nossa época eram bem mais honestas e humildes.

Somente após 5 anos do casamento, meu pai veio nos visitar para uma reconciliação e daí em diante meu esposo o acompanhava em viagens a negócios. Certa vez, tive de encontrar um bilhete em um de seus bolsos e lhe perguntei do que se tratava. Ele, com toda sinceridade, me contou de uma mulher que conhecera para as bandas de Caucaia a qual enchera-se de esperanças por ele. Não pude deixar de notar a delicadeza de sua letra realmente muito bela, o que me deixou ainda mais enciumada. No entanto, ele me garantiu que não desejava nada com ela e assim resolvi esquecer tal acontecimento.

Quando estava perto de completar mais ou menos 8 anos de nossa união tive o prazer de receber em minha casa uma pessoa que há muito não via. Ali na minha frente estava ela, minha mãe, de quem depois de muito tempo pude receber o perdão. Após esse acontecimento, finalmente veio o primeiro fruto do nosso amor que chamamos de Verônica. Com outros quatro filhos Deus ainda me presenteou.

No ano de 1967 tive que dizer adeus ao meu único e verdadeiro amor. Mas o tempo não foi suficiente para que minhas lembranças e meus sentimentos fossem apagados. Ele sempre foi e será meu príncipe. Com esse acontecimento, larguei meu interior e vim para a cidade com meus filhos. Além da perda do meu companheiro e das dificuldades enfrentadas, em 1974, devido à grande cheia, acabei perdendo os laranjais que restaram em nosso sítio. As pobres laranjeiras ficaram em baixo d'água por 30 dias e, como pudia prever, não resistiram.

Hoje, muitos anos depois, considero-me feliz por ter vencido todos os obstáculos após a perda do meu amor e ter orientado bem meus filhos. Sinto uma enorme satisfação em contar minha história principalmente para grupos de adolescentes como meus netos, e sempre previno a eles: príncipes devem cuidar bem de suas princesas e o mais importante "beijos, apenas na testa, pois é sem maldade e sem malícia”.



Texto escrito coletivamente pelos alunos do projeto Conta que eu conto,

baseado na entrevista com Maria Rodrigues de Mendonça, 88 anos,

costureira aposentada, moradora do município de Russas.


5 comentários:

  1. Adorei ouvir essa história na casa da própria dona Liquinha e principalmente ajudar a escreve-la para todos lerem.É uma linda e verdadeira história de amor.

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  2. é impressionante ver o quanto o tempo passa e mesmo assim ter em mente o mesmo amor e é como vi d.liquinha no dia da entrevista,para ela tudo pode passar mais nada a fará esquecer seu marido a quem dedicou toda sua vida!

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  3. Essa é uma linda história de vida baseada num amor verdadeiro que muitas pessoas gostariam de viver. Dona Liquinha é um exemplo de fé, esperança, alegria, luta e amor.

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  4. Conhecer a hitória de D.Liquinha foi muito importante.Uma mulher de personalidade boa,costumes,religião.Diz que beijo na testa não tinha maldade e nem malicia...
    Maria de Fátima

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  5. Queria ter participado da entrevista, mas não foi possível. Em compensação, a história é linda e romântica.

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